Pequim foi uma aventura que não precisou de tradução
A China nunca fez parte dos nossos planos. Eu sempre preferi viagens para Oeste, com os Estados Unidos na mira, e a Sarah pensava em destinos mais paradisíacos a oriente. Mesmo assim, um pouco por acaso, decidimos viajar para Pequim numa questão de minutos. Quando aliámos um preço baixo numa promoção da Lufthansa à perceção de que afinal o tempo de viagem não supera as dez horas, percebemos que não havia como resistir.
Estávamos a praticamente seis meses do passeio, mas a viagem seduziu-nos instantaneamente. Hoje, cinco anos depois, concordamos em dizer que ainda bem que a fizemos apesar de não ser algo que queiramos repetir - pelo menos para já. Um destino que sempre pareceu tão distante enquanto crescia, num país que só mais recentemente se começou a abrir a outras culturas e a mostrar a sua, apareceu mais sedutor do que nunca.
Nascido em 1985, lembro-me muito vagamente de ter visto imagens do Massacre de Tiananmen na televisão. Quase trinta anos depois, visitar a praça, a Cidade Proibida, a Grande Muralha da China e, claro, o complexo olímpico foi uma oportunidade que não podia perder, apesar do grande ponto de interrogação que saberíamos que esta viagem iria ser.
Todas as nossas escolhas tiveram o objetivo de facilitar ao máximo a nossa estadia durante aqueles seis dias. Optámos por um hotel numa zona comercial muito perto da Cidade Proibida para garantir que as refeições e uma boa parte da dose turística seriam facilmente feitas a pé. De resto, havia um autocarro do aeroporto que fazia uma rota que parava praticamente à frente do hotel. Tendo em conta que nenhum de nós arranhava sequer o mandarim além do olá e do obrigado e que o inglês nem sempre é uma opção, quisemos evitar a todo o custo problemas que se agravariam com dificuldades de comunicação.
A primeira aventura num restaurante
O jet lag para o Oriente atacou-nos de uma forma que nunca tínhamos experimentado até então. Desde acordar às 4h30 da manhã mais do que preparados para o pequeno-almoço (e logo eu que raramente me levanto para comer quando a refeição está disponível até às 10h00) até ter um apetite insaciável para jantar a meio da tarde, passámos por tudo. Por isso, pouco tempo depois da chegada fomos à procura de algo para comer na zona comercial de Xidan, a poucos metros do nosso hotel.
Havia soluções mais ocidentais de fast-food a que estamos habituados, mas queríamos tentar encontrar algo mais local. Num andar subterrâneo de um centro comercial do estilo do Fonte Nova, vimos um balcão com menus que pareciam apetecíveis. Tinha chegado a hora de falarmos pela primeira vez com chineses fora do circuito turístico. Felizmente, do outro lado estavam duas empregados tão aventureiras como nós, que demonstraram uma felicidade por estarem a comunicar com estrangeiros que não estávamos à espera.
Pedimos, com relativa facilidade, o menu que queríamos e pagar também não foi difícil. O pior foi quando uma das empregadas começou a gesticular na nossa direção como se de repente já não nos quisesse ali. Estava a fazer uma cruz com os indicadores na nossa direção como se estivesse a afastar vampiros e nós, perdidos no ambiente, não percebíamos. Ela repetiu uma, duas, três vezes até que uma luz se iluminou no cérebro da Sarah.
«Ah! Eu li sobre isto! Isto é como dizem dez!». Percebemos nessa altura que nos estava a dizer que a comida ia demorar mais ou menos dez minutos até estar pronta. Conclusão? Esperámos sem qualquer problema e até ficámos razoavelmente agradados com a comida, exceptuando uma sopa e outra mistela em que só o cheiro já era suficiente para nos afastar.
A caminho da Cidade Proibida
Era o nosso primeiro ponto de paragem. Era obrigatório. Quando escolhemos o hotel já estávamos à espera disso e depois do primeiro pequeno-almoço, com as ruas ainda desertas, decidimos andar aqueles cerca de dois quilómetros até à entrada junto da Praça Tiananmen.
O percurso serviu para darmos conta, pela primeira vez, da quantidade de polícias que há em cada quarteirão para manter a ordem, e para confirmar que os mapas enganam. Se em Boston, por exemplo, tudo parece estar à distância de um passo, em Pequim a mais pequena distância no mapa é enganadora.
A segurança é um ponto-chave na Praça Tiananmen. Os episódios sucessivos de autoimolação em protesto apertaram os pontos de controlo e tornou-se obrigatório passar por um detetor de metais na passagem subterrânea que dá acesso à praça e à entrada principal da Cidade Proibida junto ao Mausoléu de Mao Tsé-Tung.
Quando chegámos, já existia uma grande movimentação de turistas mas nada que nos fizesse esperar muito tempo. A entrada é feita sem qualquer tipo de problema e não demoro muito tempo a perceber por que lhe chamam Cidade. Entre escadas para subir e para descer, acesso a templos, jardins sempre bem cuidados e árvores históricas, percebemos que o espaço é muito maior do que esperávamos.
Aqui e ali, ouvimos o que os guias vão dizendo mas o nosso caminho continua. Paramos em sítios estratégicos para tirar fotografias ou aproveitar a beleza que cada recanto da Cidade Proibida nos oferece, mas a parte histórica, que vem nos guias, é relegada para segundo plano.
Atravessamos a Cidade Proibida até à saída do outro lado e subimos a uma pequena muralha para tirar uma nova fotografia que nos oferece uma perspetiva diferente da Cidade Proibida, com a vantagem de dar um contexto mais adequado à sua dimensão.
Ser famoso no Palácio de Verão
O que fazem dois portugueses em Pequim? O mesmo que milhões de chineses fazem todos os anos, vindos de todos os cantos do país que se aproxima rapidamente dos 1,5 mil milhões de habitantes.
Por que é que isto importa? Para perceber que apesar dos portugueses, dos franceses, dos ingleses, dos americanos, de outros europeus, a maior franja de turistas em Pequim, seja em que atração for, será sempre de chineses. Mais: será sempre de chineses que não têm qualquer contacto com Ocidentais.
Mais uma vez, a Sarah já tinha lido sobre isto e partilhado comigo. É muito comum haver turistas ocidentais abordados por chineses para tirar uma fotografia. Se for alguém louro e muito alto, os pedidos aumentam exponencialmente. Nós não somos louros. Nós não nos aventuramos além dos 1,80 metros. Nós julgávamos que não íamos passar por isso e até já nos tínhamos esquecido desse pormenor mas, de repente, durante umas breves horas na visita ao Palácio de Verão, tudo mudou.
Falar em inglês ou em mandarim pouco importa. Abordam-nos com uma timidez que é quase contagiante, dizem-nos “picture” e apontam para os dois. Acontece uma, duas, três vezes. E nunca são só eles. Ali perto, de forma discreta, toda a família está à escuta, envergonhada, sabendo se vão poder ter essa possibilidade. Nunca negamos. Achamos piada. Brincamos, entre nós, que se calhar vamos constar na prateleira das fotografias de uma família inteira para sempre. Que vão olhar para aquela fotografia que tiraram e pensar naquelas duas pessoas sobre as quais não sabem nada mas que por acaso se cruzaram uma manhã no Palácio de Verão. Tudo pela curiosidade de ver alguém tão estranho e com traços que nunca, ou raramente, tinham visto antes.
O Palácio de Verão é exatamente o que o nome indica: o local para onde os imperadores se mudavam durante a estação mais quente do ano. O ponto de maior atração é a Colina da Longevidade, banhada pelo Lago Kunming, e é para onde nos dirigimos a pé e subimos degraus atrás de degraus, atrás de degraus.
A vista é revigorante. É também aí que me apercebo do olhar feliz, cansado e contemplativo que um chinês tem ao meu lado no topo. Até hoje continua a ser uma das fotografias que mais gosto.
O berço dos mitos Bolt e Phelps
O desporto faz parte das nossas vidas e a viagem a Pequim não poderia ser exceção. Tentámos, sem sucesso, ir ver um jogo de futebol do Beijing Guoan (garantiram-nos no hotel que os bilhetes estavam esgotados), e sabíamos que, desse por onde desse, íamos acabar por ir visitar o Complexo Olímpico, que acolheu os Jogos de 2008.
As marcas olímpicas ainda estão muito presentes em Pequim nos transportes públicos. É uma sorte poder entrar numa carruagem de metro e perceber-se perfeitamente a evolução do nosso trajeto e exatamente onde temos de sair. A estação ainda fica um pouco longe mas andar, para nós, nunca é um grande problema.
O Estádio Olímpico (Ninho de Pássaro) e o pavilhão onde se disputaram as provas de natação (Cubo de Gelo) estão praticamente um à frente do outro. É impossível estar naquele local e não sentir que muita da história do desporto mundial foi feita ali, num raio de 500 metros. Usain Bolt mostrou-se ao mundo definitivamente – e de que forma! –, enquanto Michael Phelps cumpriu o desígnio de bater o recorde com oito medalhas de ouro numa mesma edição.
Aproveitámos um banco com vista para o lago junto ao Ninho de Pássaro para descansarmos e recordarmos histórias de como tínhamos vivido 2008. Eu estava a trabalhar sem folgas no Record, ela ainda estava de férias no secundário. Foram muitas madrugadas passadas sem dormir e polémicas com a comitiva portuguesa.
Ali, com o Ninho de Pássaro em plano de fundo, fizemos uma série fotográfica imitando referências de 2008. Fomos Usain Bolt, fomos Marco Fortes na caminha, fomos Nelson Évora a conquistar uma medalha de ouro, a única de Portugal naquela edição, no triplo salto.
Os casamentos do Templo do Céu
Uma das últimas paragens que fizemos em Pequim incluiu uma visita ao Templo do Céu. A lógica é muito semelhante à do Palácio de Verão mas aqui não fomos solicitados para tirar fotografias. Mais do que uma paragem turística para os próprios chineses, é uma zona que os pequineses aproveitam para uma tarde bem passada.
Há muitas sessões fotográficas de recém-casados e, pelo menos na primeira semana de abril de 2015, não há muita confusão. As paisagens são bonitas, favorecem boas fotografias e quase que nos esquecemos do ambiente poluído do centro de Pequim, naquela que foi uma das nossas maiores preocupações antes e durante a viagem.
No verão é muito pior e em abril os níveis nem estavam assim tão maus. Não sentimos necessidade de ter qualquer precaução especial mas apercebemo-nos, ao final do dia, quando nos assoávamos, que tínhamos as narinas pretas por causa da qualidade do ar, ou falta dela.
Claro que a viagem a Pequim não podia ter sido concluída sem a visita a um dos setores da Grande Muralha da China mas essa foi uma aventura tão especial que merece um texto próprio.
Guardar para ler depois: