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Relato de uma viagem ao inferno (em Los Angeles)

Algum dia havia de acontecer.

Com pelo menos quatro ou cinco viagens por ano, umas maiores e outras só um pulinho de fim-de-semana, as probabilidades diziam-nos que algum dia um de nós haveria de ficar bastante doente longe de casa.

Já tínhamos passado por uma insolação que nos cortou dois dias de férias de praia, em Marrocos, e já tínhamos tido a dor de garganta ocasional. O que não esperávamos, e até dispensávamos, era que quando a verdadeira doença chegasse estivéssemos: 1. a tentar celebrar a passagem de ano; 2. do outro lado do mundo (passe o exagero).

Recuemos então: no início de 2019 percebemos que tínhamos de tirar férias entre o Natal e a passagem de ano, algo que nunca fazemos. Como ficar em casa é desperdiçar dias "off work", começámos rapidamente a procurar opções - numa altura em que os preços são tendencialmente mais altos, por haver tanta procura, não havia tempo a perder. Ainda em março descobrimos voos para Los Angeles a 310 euros e a decisão foi praticamente tomada por nós: o preço era perfeito, as datas estavam certas e, apesar de já conhecermos a cidade (o Rui já tinha, aliás, estado lá duas vezes), ambos tínhamos a sensação de que ainda havia muito para ver.

Quando embarcámos no aeroporto de Lisboa, no dia 26 de dezembro, não esperávamos nada de diferente. Tínhamos os nossos planos, sabíamos muito do que queríamos fazer (como ir ao cinema em Hollywood), já tínhamos comprado bilhetes para jogos de NBA, NFL e NHL e estávamos completamente descansados, sem a pressão que existe quando queremos conhecer "uma cidade nova".

Postas as coisas em perspetiva, isso contribuiu para que os dias seguintes não fossem miseráveis.

Apesar de estarmos completamente relaxados, os dois primeiros dias acabaram por ser cheiíssimos - e ainda bem. Reexplorámos a Downtown e revisitámos o Original Pantry Café, fomos pela primeira vez a Little Tokyo (e deliciámo-nos com takoyaki), voltámos a Santa Monica e passeámos pela praia, fomos conhecer o The Broad, passeámos por Little Armenia e Hollywood, matámos saudades de In-N-Out e Ghirardelli... e depois eu fiquei de cama com a maior gripe que já tive na vida.

In-n-Out em Hollywood

Começou devagarinho, uma tosse estúpida durante o jogo dos Clippers. Como foi à noite, eu aguentei (dormitando) e esperei que passasse. No dia seguinte, em que tínhamos "jornada dupla" - LA Rams no Coliseum seguidos de Lakers no Staples Center - acrescentei-lhe a dor de garganta. Era mau o suficiente para fazermos o trajeto do hotel ao estádio de olhos postos na janela do autocarro, à procura de uma farmácia, mas não pensei que me arruinasse.

Não foi o jogo mais confortável da minha vida; o tempo também não ajudou, ora com o sol quente a espreitar, ora com nuvens cerradas e vento forte, a fazer oscilar a temperatura mais do que seria recomendável, mas aguentei. Sentia a febre a chegar e comecei a dar uso à medicação. A certa altura senti-me melhor, pensei "pronto, passou". O Rui perguntou-me se estava em condições de ir ao próximo. "Claro que sim, vamos lá ver o Luka Doncic" foi a minha resposta (cof cof, claro que não foi, só disse que sim, sei lá quem é o Doncic e por que é que ele é especial).

Chegámos ao Staples Center com tempo (apanhar o autocarro literalmente no meio de uma autoestrada com 8 faixas foi uma experiência que provavelmente não esqueceremos tão cedo) e começou a custar novamente. O antipirético deixou de fazer efeito, sentia-me péssima e a única coisa em que pensava era dormir (juntemos à doença o jet lag que ainda sentíamos), por isso tomei a decisão de fechar os olhos e só ver a segunda parte do jogo. O Rui diz que houve marching bands e assim. Não me lembro de nada. Acordei no início da segunda parte e mesmo em relação aos minutos que vi, lembro-me de pouco. Até hoje, tento não pensar no preço daquela sesta.

Por esta altura era bastante óbvio que a doença não seria uma coisinha pequena, mas estava longe de imaginar que, ao sair do pavilhão, não ia conseguir andar 800 metros. Estava completamente fora de questão chegar até ao metro e ir de transportes até Koreatown, onde ficámos alojados. O Rui não teve de bater o pé para me convencer a chamar um Lyft: em menos de 10 minutos estava na cama.

A noite foi péssima; se estivesse em casa teria mudado os lençóis, encharcados em suor, pelo menos um par de vezes. Ali, aguentei durante a noite, tentando perceber quanto marcaria o termómetro, se tivesse um ali à mão. No dia seguinte acordei tarde, e melhor - pensava eu. Insisti para que mantivéssemos o plano de ir ao cinema no Chinese Theatre: não o tínhamos feito dois dias antes, quando passámos por Hollywood, e era algo que estava nos planos há meses.

Downtown LA

Foi uma má ideia. A viagem até lá até foi tranquila, e a primeira parte do filme também. Depois, tudo descambou. Passei pelo menos uma hora a bater o dente de frio, enrolada em casacos, dentro da sala de cinema. Não conseguia imaginar como ia fazer a viagem de metro de regresso, e andar os 1500 metros que separavam a estação mais próxima do nosso hotel. Não queria voltar a apanhar um Lyft desnecessariamente.

É verdade que não estava no fim do mundo, num país onde o acesso à saúde fosse extremamente difícil (quer dizer, esta parte não é bem verdade, mas ficará para outras discussões) ou onde não falasse a língua. Estar em Los Angeles ou Lisboa com uma gripe - mesmo que violentíssima - é objetivamente muito semelhante. Vamos à farmácia, abastecemo-nos de antipiréticos e esperamos. Há sítios piores para ficar doente.

Mas estamos fora de casa, os medicamentos têm nomes diferentes, as farmácias têm horários e funcionamentos distintos daquilo a que estamos habituados. E a cama é outra, falta-nos o roupão e os chinelos à espera quando saímos do banho, a roupa está contada. O pequeno almoço não é de chá e torradas, porque estamos num quarto de hotel, e a comida americana (pensam que não há algo chamado comida americana? Fiquem doentes, nauseados e a querer a vossa comida de sempre e falamos depois) enjoa-vos só de pensar nela.

Não vi razão para acionar o seguro e ir ao médico porque reconheci os sintomas: era uma gripe - a mais forte que já tive, sim, mas era uma gripe. Não há nada a fazer que não controlar a febre e esperar que passe. Em retrospetiva, talvez tivesse sido bom passar pelas mãos de um profissional de saúde, mas só saberia isso no voo de regresso. Naquele momento, tínhamos dois dias e meio de "férias" pela frente e eu estava confinada ao quarto.

Ainda consegui curtir os Rams

No dia 31 de dezembro havia jogo dos LA Kings e os bilhetes estavam comprados. Da minha parte, estava absolutamente fora de questão ir, mas o Rui não precisava de ficar fechado e desperdiçar os bilhetes. Apesar da minha insistência, depois de não conseguir arranjar companhia para ir, acabou por ficar "a tratar de mim". A nossa passagem de ano foi assim, passada entre suores quentes e frios, chá com mel e sono profundo, cortesia de anti-histamínicos não sujeitos a receita médica.

O regresso estava marcado para dia 1 de janeiro (bom 2020 a todos, pessoal!) às nove da noite. Excelente horário para quem quer aproveitar mais um dia na cidade, ainda dava para um monte de coisas antes de ir para o aeroporto; menos excelente para quem precisa de estar de cama, com febre totalmente descontrolada, vómitos, tosse e sabe-se lá mais o quê. Tínhamos de sair do hotel às 11h e as opções não eram muitas: podíamos reservar mais uma noite e ficar no quarto até mais tarde, podíamos alugar um quarto "ao dia" num hotel do aeroporto ou podíamos ir diretos para LAX e arranjar um cantinho onde pudéssemos passar oito horas. Foi o que fizemos, e o cantinho que arranjámos era bom.

Confesso que as horas passadas no aeroporto - assim como os dois dias que passei de cama - não estão claros na minha memória. Lembro-me de dormir, muito, num sofá muitíssimo confortável por detrás do Starbucks do terminal internacional. O Rui deve ter apanhado uma seca. Quando embarcámos não me sentia febril, e pensei que o pior já tinha passado. Spoiler alert: não tinha.

Se há uma lição que tenho para vocês, hoje, é esta: lembrem-se que os aviões são pressurizados como se estivéssemos em altitude, e o oxigénio existe em menor quantidade. Se já estão com alguma dificuldade em respirar, ela vai piorar. Ah!, e desmaiar num voo não tem piada nenhuma.

Pronto, podem imaginar o filme que foi a viagem de regresso. Entre Los Angeles e Londres, onde faríamos escala, são mais ou menos 11 horas de voo. E foi uma experiência que não quero repetir. Por um lado, porque foi uma irresponsabilidade enfiar-me num sítio fechado, com ar reciclado, sabendo que provavelmente estaria contagiosa; segundo, porque me senti horrível. Logo nessa altura percebi que o que teria feito de melhor era ir ao médico, que provavelmente me diria que não podia voar naquela data, e adiar o regresso por um par de dias - afinal, é para estes casos que contratamos seguros de viagem, certo?

Mas houve mais lições a reter, apesar de só terem chegado agora, com um mês de reflexão em cima: não é o fim do mundo ficar doente em férias. É chatíssimo, é um desperdício de dinheiro e vão ficar com imenso por ver, sim, mas acontece. Há muito poucos lugares do mundo a que não possam voltar noutra altura, de preferência mais saudáveis. E é muito mais importante a vossa recuperação do que uma selfie com o sinal de Hollywood.

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